segunda-feira, 2 de março de 2015

A Estreia



Chovia a potes e estava frio. A nortada açoriana é assim mesmo: abertas, chuva muito forte e muito frio. Creio que estávamos em Outubro. Tinha 12 anos e ia vestir pela primeira vez a camisola do Lusitânia.


Não era fácil jogar pelo Lusitânia, eramos mais de 30 miúdos que nunca falhavam os treinos. As oportunidades eram escassas para jogadores de 1º ano do escalão de iniciados e, não sendo eu especialmente talentoso e também sendo um dos mais pequenos da equipa, as oportunidades iam ser poucas. Muitos dos meus colegas nunca o foram e continuaram a treinar como se nada fosse. Alguns destes que nunca desistiram iriam ser jogadores da equipa principal num futuro que na altura parecia ainda muito longe.


Antes de ter recebido a notícia que tinha sido convocado o treinador deu-me a entender, antes do último treino da semana, que eu poderia ter uma ‘surpresa’. Assim foi, meu nome pela 1ª vez nos convocados, ia jogar pelo Lusitânia. Hoje em dia é difícil fazer entender o que era o Lusitânia mas, na altura, andava no patamar abaixo da 1ª divisão nacional, a velha 2ª divisão. Só com jogadores açorianos, tudo amadores. Era o grande clube açoriano, só rivalizado pelo Santa Clara. Jogadores de todas a ilhas (inclusive de São Miguel) lá jogavam, com óbvia maioria terceirense. 


Dia de jogo. As memórias ganham força quando chego ao campo de jogos. Dia cinzento, poças espalhadas pelo pelado do Campo de Jogos de Angra, equipa adversária em campo (Terra Chã). Fui para o banco mas pouco tempo depois um dos nossos jogadores é tocado e lá vou eu. Enfim, estreia. Médio Direito – Ala. Um dos primeiros toques na bola, num ressalto ganho a bola, meto sem querer a bola entre as pernas do defesa e fico à frente do guarda-redes, ainda a alguma distância. Lembro-me de ficar na dúvida entre avançar com a bola ou rematar, resolvo avançar e dou um mau toque na bola, lá foi a oportunidade. Pouco tempo depois, canto a nosso favor, bola passa por todos e no segundo poste estou eu com a bola à mercê mas não cheguei a tempo. Lá se foi outra oportunidade. Não tive mais nenhuma. Do jogo pouco mais me lembro: uma troca para Ponta de Lança e fim do jogo. Em termos de estreia não foi mau, longe de ser épico também. Acrecentarei a este post a única fotografia que documenta esse dia, tirada pelo o único espectador do jogo, o meu pai.


Uma outra memória também desse jogo ficou e marcou, mas ponhamos em contexto: a Terceira estava ainda em processo de reconstrução após o grande sismo de 1980. Foram construídos alguns bairros de habitação temporária para alguns desalojados que acabou por se tornar permanente com o passar dos anos. Geralmente eram ocupados por pessoas de menos posses, pessoas que antes trabalhavam no campo. Um desses bairros localiza-se na Terra Chã, alguns dos jogadores da equipa contra quem jogámos eram desse meio. Lembro-me perfeitamente dum jogador da Terra Chã muito pequeno, muito franzino, a tiritar de frio, agarrado a si próprio, a dar uns passos para se aquecer. O rapaz não tentava jogar, apenas a sobreviver ao frio que para ele era intolerável. A fome era algo a que eu nunca tinha sido exposto, muito menos a miúdos como eu. Aí estava, à minha frente. Por muito que recordemos o passado e desdenhamos o progresso, é inegável que algumas coisa mudaram para melhor. Alguns problemas permanecem, mas há melhores condições de vida e outro acompanhamento destes casos.


Hoje em dia continuo a jogar a bola oficialmente, partilho as mesmas cores que o Lusitânia mas não o mesmo emblema. O campo é o mesmo, hoje em dia coberto com relva sintética de nova geração. Quase 30 anos depois. Muito mudou. O gozo de jogar à bola não.
 

2 comentários:

  1. Por mais voltas que a vida dê, uma estreia num clube que admiramos é algo que permanece para sempre na nossa memória.

    Felizmente para o teu clube atual, fazes parte dos que nunca desistiram.

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    1. Tu sabes como é.
      Mas poucos desistiram, outros tempos.

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