quinta-feira, 19 de março de 2015

O Letná




Chegam os 90 minutos após o apito inicial dum jogo aborrecido. Pouco ou nada o Sparta fez, pouco ou nada fez também o Hertha. O pouco de interessante vinha de uma das bancadas do topo do estádio onde a claque do Hertha foi incansável. Em campo apenas um jogador saía da mediania, um jovem de 18 anos da formação do Sparta, Rosicky de seu nome. Nos descontos, jogada do ataque do Sparta, bola a sobrar na entrada da área, ainda a alguma distância da baliza, aparece o médio defensivo Milan Fukal a rematar de primeira e com toda a força do mundo a bola que só pára na rede no Hertha. 
Grande golo. Fim do jogo.


Estávamos em fim de inverno, 7 de Março, jogava-se a 2ª fase de grupos da Champions 1999/2000, num grupo onde para além dos acima mencionados estavam um tal de Barcelona e um Futebol Clube do Porto. O jogo Sparta-Hertha foi jogado no Estádio Letná, em Praga, casa do Sparta.

Este jogo não o vi na televisão, calhou ser este o único jogo de futebol ao vivo que vi fora de Portugal. O acaso pôs-me em Praga nesse dia, acabadinho de chegar de Paris, em plena viagem de lazer com amigos. No hostel o recepcionista falou-nos no jogo mas indicou que os bilhetes eram caríssimos. Ficou decidido que iríamos para a bola, eventualmente os bilhetes mais baratos. 

O estádio Letná fica no centro de Praga, dentro do parque com o mesmo nome, conhecido também lá ter estado uma brutal estátua de Estaline que durou apenas de 1955 a 1962, sendo destruída pelo próprio Partido Comunista Checo. O legado de Estaline, já na altura, era muito pesado e a enormidade da estátua não ajudava a amenizar os Checoslovacos (na altura existia a Checoslováquia).

Apanhámos o metro perto do Museu Nacional de Praga, saímos na estação do Letná a caminho do estádio. Muitos bilhetes em mercado negro disponíveis mas optou-se pela via legal. Os tais bilhetes caríssimos afinal não o eram, optámos pelos mais caros, Bancada Central, 3 contos de reis (segundo a cotação da altura).

Comeu-se qualquer coisa nas roulotes do clube (lá estão dentro da área do estádio) e bola com eles. 

Estádio simples em termos estéticos, boa visibilidade, confortável qb. Do jogo já falei. O público Checo não é muito dado a grandes gritarias, mas o golo veio mostrar que o sofrimento estava lá. Uns gritos de Sparta, nada de cânticos. 
E pouco mais me lembro.

Hoje em dia o estádio é oficialmente baptizado de Generali Stádion, razões de patrocínio. Os dois jogadores em evidência no jogo, Rosicky e Fukal, ainda jogam. Rosicky continua a ter uma excelente carreira, apesar de estar no seu ocaso. Actualmente está no Arsenal. Fukal ainda joga, aos 39 anos, nas divisões inferiores Austríacas, no entanto também teve uma carreira interessante, com passagens em grande clubes alemães.

Aos 41 anos continuo à espera do segundo jogo ao vivo fora do país, de preferência em Inglaterra. A sorte não quis nada comigo quando lá estive em 2013, era fim de semana de selecções e a inglesa jogava fora.

segunda-feira, 2 de março de 2015

A Estreia



Chovia a potes e estava frio. A nortada açoriana é assim mesmo: abertas, chuva muito forte e muito frio. Creio que estávamos em Outubro. Tinha 12 anos e ia vestir pela primeira vez a camisola do Lusitânia.


Não era fácil jogar pelo Lusitânia, eramos mais de 30 miúdos que nunca falhavam os treinos. As oportunidades eram escassas para jogadores de 1º ano do escalão de iniciados e, não sendo eu especialmente talentoso e também sendo um dos mais pequenos da equipa, as oportunidades iam ser poucas. Muitos dos meus colegas nunca o foram e continuaram a treinar como se nada fosse. Alguns destes que nunca desistiram iriam ser jogadores da equipa principal num futuro que na altura parecia ainda muito longe.


Antes de ter recebido a notícia que tinha sido convocado o treinador deu-me a entender, antes do último treino da semana, que eu poderia ter uma ‘surpresa’. Assim foi, meu nome pela 1ª vez nos convocados, ia jogar pelo Lusitânia. Hoje em dia é difícil fazer entender o que era o Lusitânia mas, na altura, andava no patamar abaixo da 1ª divisão nacional, a velha 2ª divisão. Só com jogadores açorianos, tudo amadores. Era o grande clube açoriano, só rivalizado pelo Santa Clara. Jogadores de todas a ilhas (inclusive de São Miguel) lá jogavam, com óbvia maioria terceirense. 


Dia de jogo. As memórias ganham força quando chego ao campo de jogos. Dia cinzento, poças espalhadas pelo pelado do Campo de Jogos de Angra, equipa adversária em campo (Terra Chã). Fui para o banco mas pouco tempo depois um dos nossos jogadores é tocado e lá vou eu. Enfim, estreia. Médio Direito – Ala. Um dos primeiros toques na bola, num ressalto ganho a bola, meto sem querer a bola entre as pernas do defesa e fico à frente do guarda-redes, ainda a alguma distância. Lembro-me de ficar na dúvida entre avançar com a bola ou rematar, resolvo avançar e dou um mau toque na bola, lá foi a oportunidade. Pouco tempo depois, canto a nosso favor, bola passa por todos e no segundo poste estou eu com a bola à mercê mas não cheguei a tempo. Lá se foi outra oportunidade. Não tive mais nenhuma. Do jogo pouco mais me lembro: uma troca para Ponta de Lança e fim do jogo. Em termos de estreia não foi mau, longe de ser épico também. Acrecentarei a este post a única fotografia que documenta esse dia, tirada pelo o único espectador do jogo, o meu pai.


Uma outra memória também desse jogo ficou e marcou, mas ponhamos em contexto: a Terceira estava ainda em processo de reconstrução após o grande sismo de 1980. Foram construídos alguns bairros de habitação temporária para alguns desalojados que acabou por se tornar permanente com o passar dos anos. Geralmente eram ocupados por pessoas de menos posses, pessoas que antes trabalhavam no campo. Um desses bairros localiza-se na Terra Chã, alguns dos jogadores da equipa contra quem jogámos eram desse meio. Lembro-me perfeitamente dum jogador da Terra Chã muito pequeno, muito franzino, a tiritar de frio, agarrado a si próprio, a dar uns passos para se aquecer. O rapaz não tentava jogar, apenas a sobreviver ao frio que para ele era intolerável. A fome era algo a que eu nunca tinha sido exposto, muito menos a miúdos como eu. Aí estava, à minha frente. Por muito que recordemos o passado e desdenhamos o progresso, é inegável que algumas coisa mudaram para melhor. Alguns problemas permanecem, mas há melhores condições de vida e outro acompanhamento destes casos.


Hoje em dia continuo a jogar a bola oficialmente, partilho as mesmas cores que o Lusitânia mas não o mesmo emblema. O campo é o mesmo, hoje em dia coberto com relva sintética de nova geração. Quase 30 anos depois. Muito mudou. O gozo de jogar à bola não.